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Uma nova abordagem da advocacia criminal

A particular sistemática prescricional dos crimes falimentares

por Felipe Colloca e Caio Giuranno

De acordo com o Indicador de Falências e Recuperações Judiciais da Serasa Experian, em outubro de 2024, o Brasil registrou 223 novos requerimentos de Recuperação Judicial, um aumento de aproximadamente 37% quando em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Já os pedidos de falência alcançaram um aumento de 50% na comparação do mesmo período.

Esse cenário demanda uma maior atenção aos delitos dispostos na Lei n. 11.101/05, popularmente conhecidos como “crime falimentares” (ainda que eles também se apliquem a hipóteses de recuperação judicial ou extrajudicial). 

E um detalhe que muitas vezes passa despercebido ao analisar esses delitos é a particular sistemática prescricional, herdada do Decreto-Lei n. 7.661/45, que regeu a matéria até a entrada em vigor da Lei n. 11.101/05.

Diferentemente do Código Penal, o Decreto-Lei n. 7.661/45 previa que a prescrição dos crimes falimentares operava em dois anos (art. 199), não importando qual era a pena abstrata ou concreta. Quanto ao termo inicial do prazo prescricional, este era o trânsito em julgado da sentença que encerrou a falência ou que julgou cumprida a concordata (art. 199, parágrafo único), matéria inclusive sumulada pelo STF (Súmula 147). Não se aplicava, portanto, a data da consumação do fato. 

Por se tratar de norma material, a sua aplicação ainda subsiste atualmente quando beneficiar acusado que tenha cometido fatos anteriores a 9 de junho de 2005, início da vigência da Lei n. 11.101/05.

Referida lei reformou os procedimentos de falência e recuperação e mudou a sistemática prescricional. Dispôs expressamente que a prescrição se rege pelo Código Penal, porém ressalvou que o termo inicial é a “decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial” (art. 182).

Em outras palavras, o termo inicial que antes era o fim do procedimento, agora foi antecipado. 

Importante dizer que uma breve leitura dos crimes falimentares revela que eles podem ser cometidos antes ou depois da decretação da falência, concessão da recuperação judicial ou homologação do plano de recuperação extrajudicial.  Tomemos como exemplo o delito de favorecimento de credores (art. 172): ele prevê no próprio tipo que sua consumação pode se dar antes ou depois dos eventos mencionados. O crime de desvio, ocultação ou apropriação de bens (art. 173) necessariamente acontecerá depois deles. Então, por que não estabelecer a regra geral do Código Penal para termo inicial da prescrição?

A resposta está no artigo 180 da lei, que diz que a sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial ou extrajudicial é condição objetiva de punibilidade para os crimes falimentares. Assim, tendo em vista não ser possível iniciar ação penal antes desses eventos, o legislador julgou adequado estabelecer que a prescrição somente passaria a correr após algum desses atos.

Essa escolha legislativa acarreta alguns desafios que devem ser solucionados pela jurisprudência e doutrina. A começar pela (im)possibilidade de inquérito policial antes da sentença no processo de recuperação ou falência. Isso, porque falta uma condição objetiva de punibilidade que pode não vir a se realizar. Por um lado, pode haver elementos probatórios que justificam investigações preliminares; por outro, a incerteza sobre a consumação da condição pode gerar investigações infrutíferas ou prematuras.

Outra questão diz respeito aos delitos cometidos após a sentença. O artigo 182 da Lei n. 11.101/2005, quando aplicado literalmente, pode entrar em conflito com os princípios de razoabilidade, proporcionalidade e a lógica da prescrição no direito penal. Esses conflitos evidenciam a necessidade de uma interpretação que concilie a norma especial com os fundamentos do sistema penal brasileiro.

Explica-se. Se um crime é praticado mais de dois anos após a sentença, pela literalidade do artigo 182, ele já estaria, em tese, prescrito antes de sua própria existência. Essa dinâmica evidentemente viola a lógica do sistema penal, que presume o transcurso de um período, ainda que mínimo, para que a prescrição se opere.

Não obstante, é sabido que a prescrição tem como um de seus objetivos assegurar que o Estado exerça seu poder de punir em um prazo razoável, respeitando o devido processo legal. A contagem a partir de um momento arbitrário, como a decretação da falência, compromete essa finalidade, pois ignora o tempo transcorrido entre a prática do crime e o início de uma possível investigação.

Dada a incompatibilidade descrita, interpretações ou ajustes legislativos poderiam alinhar a aplicação do artigo 182 com os princípios do Código Penal. Vejamos algumas alternativas:

  • Contar a prescrição a partir da consumação do crime, mas suspender o prazo até que a decretação da falência ou equivalente ocorra (condição objetiva de punibilidade); ou
  • Aplicar o artigo 182 apenas aos crimes praticados antes da sentença, respeitando o marco da consumação para crimes posteriores; 

Portanto, diante das inconsistências e desafios interpretativos relacionados à prescrição dos crimes falimentares no sistema penal brasileiro, especialmente nos casos praticados após a decretação da falência ou concessão da recuperação, mostra-se necessário que se busquem alternativas que promovam maior coerência e segurança jurídica. Muito embora seja bem-vindo um ajuste legislativo, são possíveis soluções por meio de interpretações jurisprudenciais, sendo fundamental, em ambos os casos, que se lide com a lacuna de maneira consistente, fortalecendo a eficácia da justiça penal e a confiança no ordenamento jurídico.

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